quinta-feira, 5 de maio de 2016

O agridoce bafo do dragão



Ainda tenho as últimas palavras de “O Gigante Enterrado” flutuando na minha memória quando começo a escrever esta resenha. Permeia também uma sensação de encantamento, nostalgia e a certeza de ter terminado um daqueles livros que demoram em partir, que nos deixam órfão.

Passaram-se 10 anos desde o último romance de Kazuo Ishiguro, “Não me abandone Jamais”, mas o escritor permaneceu presente com as excelentes adaptações para o cinema de seus livros e uma crítica ansiosa por um novo romance. Nascido no Japão, Ishiguro se mudou para a Grã-Bretanha ainda menino e de lá  provém suas grandes influências. Talvez o fato de ter crescido entre duas fortes culturas o tenha transformado em um artista único. A literatura de Kazuo é uma mistura do sútil e da nostalgia, e em “O Gigante Enterrado” ganha um novo ingrediente: a fantasia.

Em uma terra amaldiçoada por uma misteriosa névoa que causa um esquecimento coletivo, um casal de idosos, guiado pela intuição e por um desejo incompreendido de buscar o filho perdido, parte em uma jornada por uma terra assolada por recentes guerras e ameaçada por uma dragoa.

A narrativa caminha aos passos de Axl e Beatrice, o casal protagonista, e a história flui com lirismo e incríveis descrições de uma Grã-Bretanha que respira ares de paz, ao mesmo tempo, convive em um ambiente de iminente caos. A todo momento somos levados a refletir sobre o poder da memória e a influência que ela nos causa. A jornada dos protagonistas é guiada por lembranças que vão surgindo durante o percurso. Lembranças de guerras passadas, memórias do filho que se foi, recordações de antigos conflitos pessoais.  Axl e Beatrice fortalecem um amor que, mesmo no esquecimento, continuou vivo, nos fazendo questionar qual o poder da memória na nossa vida?



Outros personagens surgem no caminho do casal. O jovem Wistan e o garoto Edwin dão um tom de maior ação ao enredo e recriam a imagem de guerreiro, com suas batalhas de espadas e o jeito de herói. Já Gawain e seu fiel cavalo Horácio são tipicamente “quixotianos” e, ao mesmo tempo, transbordam um humor e apatia nata de um fiel escudeiro do Rei Arthur.  O dragão - que neste caso  é uma dragoa - é a motivação do aparecimento dos guerreiros e das desavenças entre saxões e bretões.
É no  agridoce bafo de Querig que àquele mundo fantástico se mantêm vivo e os conflitos enterrados. É no sono do dragão que a aparente paz dorme sob cautela e sob túmulos de gigantes.

É importante destacar também o poder que Ishiguro tem na construção de metáforas. O segredo é  não se afobar durante a leitura. Muitas cenas e personagens se fazem compreender no percurso, já que o livro é uma grande metáfora sobre o amor, a guerra e a morte. 

A história de Ishiguro já foi comparada "As crônicas de Gelo e Fogo" (que deu origem à adaptação da HBO Game of Thrones), comparação esta com a qual não posso concordar plenamente, já que vejo em "O Gigante Enterrado" muito mais de Cervantes e Tolkien do que de Martin. A leitura é sutil, pautada mais nas relações humanas e nas descrições do que no próprio enredo. A fantasia é o pano de fundo para a construção dos personagens e os conflitos totalmente internos.

É com este cerne que a história se desenvolve; na busca pelo filho e pelas lembranças, Axl e Beatrice enfrentam fadas, monges, cavaleiros. Passam por lugares lúgubres, aldeias, montanhas, lagos e a cada novo passo a personalidade de ambos desabrocha, revelando que as memórias também podem reavivar desavenças e antigos remorsos.

Arrisco a dizer que muitas pessoas não conseguirão captar bem a essência da obra ou a sutileza da escrita. O livro tem diálogos que aparentam simplicidade, mas são  a gênesis da construção dos significados que a obra almeja. É uma história sobre a memória coletiva, sobre como nos guiamos por nossas recordações e experiências e acima de tudo é um livro que fala de amor, do desapego e do seguir adiante. O livro consegue ir longe, além de seus significados enterrados. "O Gigante Enterrado" é, com toda certeza, um livro para guardar na memória.

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