domingo, 5 de julho de 2015

Uma História escrita A Sangue Frio


Era uma manhã fria de domingo, uma manhã em que o outono começava a mesclar-se com o inverno e o ar era seco e cortante. Permitiu-se acordar um pouco tarde, nas horas seguintes ao almoço. Havia bebido além da conta no dia anterior, 14 de novembro, e uma dor de cabeça inconfundível de ressaca teimava em martelar, querendo ganhar vida, almejando estragar as poucas horas do fim de semana que ainda restavam.  Demorou-se alguns minutos até tomar a decisão de sair da cama para começar suas tarefas diárias e resolveu que antes de tudo tomaria um café, sem açúcar como era seu habitual. Vestiu-se e com a dor-de-cabeça aumentando saiu para comprar o café e o jornal do dia. Não desejou “bom dia” ao porteiro, como sempre fazia, apenas passou evitando olhares e conversas desnecessárias. Só queria um pouco de paz.
O dia estava incomum para um domingo frio: muita gente na rua, muito barulho. Comprou o New York Times pensando no seu apartamento quente e na possibilidade de passar o resto do dia na cama. Não escreveria naquele dia. Já haviam passado dias desde a última vez que escrevera uma única frase completa. Não sentia vontade, simplesmente não queria. As coisas não funcionavam assim para ele, e nas últimas semanas evitava o máximo possível às ligações do seu editor.
Voltou ao apartamento aliviado, sentou-se na cozinha que não limpava desde “não se lembrava quando”, e deu uma passada de olho pelas manchetes do dia. O ano de 1959 seguia sem grandes acontecimentos. O mundo continuava a se dividir entre heróis (americanos, capitalistas) e vilões (russos e comunistas). Tudo parecia seguir o rumo de uma nova guerra. Alheio, ao menos naquele domingo de ressaca, às notícias políticas, o olhar de Truman Capote passava rapidamente pelas páginas do jornal, enquanto bebericava o café forte e sentia o aroma fresco; a língua queimando. Um estranho que o visse de longe imaginaria que ele estava atento a tudo, menos às páginas que folheava sem vontade. Era uma figura estranha, sentada em uma cozinha suja e caótica, com um copo descartável de café e um olhar frio. Era difícil imaginar que daquela cena nasceria um dos maiores livros já publicado na história americana.
Enquanto as grandes manchetes não lhe chamavam a atenção, uma pequena nota isolada em uma página perdida, sem muitos atributos, o fez mudar de posição na cadeira e deixar o café de lado ao menos por um minuto. Eram dois parágrafos sucintos que descreviam a chacina de uma família no interior do Kansas, estado do centro dos Estados Unidos. Uma família inteira assassinada por poucos trocados, de forma brutal e aparentemente sem deixar marcas. Não muito diferente de outros casos que o New York Times já noticiara outras vezes.
Mas foi ali, na tragédia de uma família tipicamente americana, que Capote encontrou vestígios para escrever um dos livros mais emblemáticos do jornalismo e da literatura mundial. Polêmico e desempenhando o papel de jornalista 24 horas por dia, Capote passaria os próximos seis anos de sua vida envolvido naquela história de arrepiar. Uma triste realidade que saiu do anonimato de uma minúscula cidade qualquer para se transformar num relato único e pavoroso.


***


É impossível falar de “A Sangue Frio” sem citar o seu polêmico autor, Truman Capote. Ao ler a pequena notícia sobre a chacina de uma família, o jornalista percebeu que ali nascia a oportunidade de fazer o trabalho da sua vida: Inaugurar o romance de não-ficção. Entre as polêmicas que envolvem o livro e a vida de Capote, a criação de um novo gênero jornalístico (ou seria literário?) é uma das mais questionadas. Muitos afirmam que o romance de não ficção já existia, praticada na mesma revista em que trabalhava Capote, a The New Yorker. Décadas antes John Hersey havia publicado a grande-reportagem (que também se transformou em livro) Hiroshima (1946), que contava o relato de sobreviventes às bombas de Hiroshima e Nagasaki no Japão, durante a segunda guerra mundial.

Truman Capote


O jornalismo de não-ficção,  também conhecido como New Journalism ou Jornalismo literário é um estilo que, de forma a simplificar-se o significado, mistura preceitos jornalísticos (apuração, entrevistas, informações, etc) com literatura, relatando um fato de forma, muitas vezes, mais aprofundada, baseando-se em características psicológicas, descrevendo cenas, lugares, pessoas, etc. O texto é mais longo e é permitida uma visão pessoal do jornalista. Existem várias vertentes do estilo e muitos escritores se fizeram famoso escrevendo esse tipo de literatura, como por exemplo, Tom Wolfe, Gay Talese e Gabriel García Márquez.

A Sangue frio é o resultado de cinco anos de apuração, entrevistas e, por que não, impressões pessoais de Truman Capote sobre a tragédia da família Clutter, assassinada no dia 14 de novembro de 1959 na pequena cidade de Holcomb, Kansas. Truman chegou à cidade cena do crime apenas alguns dias depois da tragédia, e passou anos no local, entrevistando conhecidos, vizinhos, investigadores e os próprios assassinos da família. Em seu relato, ele deixa transparecer o psicológico de Perry Smith e Dick Hickock, os criminosos, revivendo a infância e os traumas dos mesmos. Sabe-se que Capote foi o único com acesso aos criminosos quando ambos já estavam condenados ao corredor da morte. Neste ponto há uma crítica com relação a postura profissional de Capote. Seus críticos afirmam que a relação do escritor com os assassinos passou do campo profissional e tornou-se pessoal, especialmente com Perry Smith; há “teorias” de que ambos mantiveram um caso no período em que Smith esperava a sua condenação.

Em ordem: Perry Smith e Dick Hickock


O fato é que, apesar das polêmicas e das críticas à postura ética de Capote, A Sangue Frio não é apenas um relato cru da cena de um crime, é um romance que se embrenha pela própria sociedade americana, se aprofunda na mente psicopata e, por que não, na justiça americana daquela época.
O livro começa antecipando o principal fato da história: o assassinato dos quatro membros da família Clutter. Aos poucos você vai conhecendo a rotina de uma das famílias mais queridas e respeitadas daquela comunidade; vai se acostumando com a simplicidade de Holcomb (que espera o correio jogado pelas portas de um trem, que nem sequer para na cidade). Você só conhece os detalhes dos assassinatos no mesmo tempo em que os investigadores vão descobrindo pistas e fatos sobre o fato. Os assassinos não são um segredo para o leitor, que nas descrições de Capote vai “entendendo” as motivações de Smith e Hickock. Truman vai fundo e busca explicações nos traumas dos criminosos. Aqui vale um parêntese. A narrativa do livro te leva a crer que Perry Smith, apesar de ter assumido ter atirado nos quatro membros da família, não é o “malvado” da história. Com uma história triste e pobre, Smith é encorajado todo o tempo por Dick a realizar o ato de crueldade. Muitos acreditavam na insanidade de Perry, e alguns críticos afirmam que conhecendo Smith como conheceu, Capote podia ter testemunhado em favor da “loucura” do assassino. Uma questão ética entra em pauta: até que ponto o jornalista pode interferir nos fatos?

Fugindo um pouco das polêmicas, A Sangue Frio segue uma narrativa precisa, onde cada detalhe é exposto e explicado, onde os personagens secundários te ajudam a compreender a realidade de Holcomb e como viviam os Clutter. Você é inserido na história e em alguns momentos é possível que surja uma pergunta. Como Capote poderia saber de tantos detalhes?

Família Clutter


Uma pergunta respondida em quase seis anos de trabalho, que só terminou quando os assassinos foram enforcados em 14 de abril de 1965. Do fatídico dia em que a rotina de Holcomb foi interrompida pelo assassinato da família Clutter ao dia em que os assassinos pagaram por seus crimes, Capote mantém uma descrição dos fatos incrível. É difícil não perceber características que seriam influência para posteriores relatos de jornalismo e literatura. Os dias em que os assassinos passaram à espera no corredor da morte foi uma possível inspiração para Stephen King escrever um de seus livros mais famosos, “The Green Mile” (À espera de um milagre no Brasil). Perry Smith recebia visita de um pequeno animal em sua primeira cela. Era sua única companhia e assim como Eduard Delacroix  treinava o seu ratinho de circo. Os personagens de King também mantém certa semelhança com a descrição de Capote dos companheiros de Smith e Dick no corredor da morte.

Ao terminar A Sangue Frio fica uma sensação gelada no corpo. Ler o livro é como reviver aqueles dias; é transformar-se em um observador, assim como foi Capote, do desenrolar de um dos crimes que abalaram a América. Famílias seguiram sendo assassinadas, criminosos seguiram manchando de sangue comunidades pacíficas por todo o mundo, mas nenhum livro foi capaz de chocar e relatar tão bem como foi A Sangue Frio, já um ícone do jornalismo e da literatura.


No Brasil A Sangue Frio é publicado pela editora Companhia das Letras. Para quem se interessa também há dois excelentes filmes sobre a história. A primeira baseada no livro, que conta a história dos assassinos e de acordo com o enredo do livro. O filme é de 1967 e possui o mesmo título do livro. O outro filme se chama Capote (2005) e é sobre a relação de Capote com a história. Dois ótimos filmes.