quarta-feira, 27 de abril de 2016

O dia em que conheci Mario Vargas Llosa


No dia em que conheci Mario Vargas Llosa o frio era tão forte que cortava meu rosto desabrigado e seco. Eu caminhava apressado pelo centro de Santiago do Chile, ansioso por chegar à cerimônia de agraciação do intelectual como Doutor Honoris Causa pela Universidade Diego Portales, uma das mais prestigiosas do Chile.

Poucos dias antes havia lido uma entrevista do escritor peruano ao jornal "El País" na qual ele se declarava a favor do impeachment da presidente brasileira Dilma Rousself. Na entrevista ele afirmava não saber muito do caso, mas acreditava que se o impedimento fosse legítimo, ele deveria ocorrer e via o que ocorria no Brasil como um exemplo "democrático" para a região. A opinião não me intrigou, pois já reconhecia em Llosa um crítico dos governos populistas que se instalaram na última década em alguns países da América Latina, entre eles o Brasil. O que me levava a acordar cedo em uma terça-feira fria era mais do que a curiosidade de conhecer um escritor famoso, era o desejo de entendê-lo e descobrir os pilares de um dos poucos nobel de literatura que nosso subcontinente recebeu.

Conheci a literatura de Llosa com "A Guerra do fim do mundo", que inspirado no livro de Euclides da Cunha, também narra a Guerra de Canudos no sertão baiano. Fiquei intrigado com a perspicácia do escritor em mesclar personagens reais e fictícios e no conhecimento sobre o conflito. Segundo palavras do mesmo, Canudos é um reflexo da América Latina e seus conflitos internos. Apesar da qualidade do livro, a narrativa não me fez um apaixonado por Llosa como, por exemplo, a leitura de "Cem anos de Solidão" me transformou em um leitor voraz dos livros de Gabriel García Márquez. 

Cheguei à Universidade e muita gente já se encontrava por lá. Me senti um pouco intimidado por ver tantas pessoas engravatadas, vários ministros, escritores e o ex-presidente chileno Sebastián Piñera prestigiavam Llosa. Muitos estudantes também ocuparam a plateia lotada do evento. Procurei me misturar entre eles e ser mais um observador.

Quando enfim a cerimônia começou e o reitor apresentou Llosa ao público, meus olhos se encontraram com o senhor de rosto duro e cabelo grisalho sentado de forma imponente e observando as reações da plateia. Ao ser anunciado levantou-se em meio a uma salva de palmas que não o intimidou. Passos firmes, olhar sério e um meio sorriso, o Nobel de Literatura começou sua fala e já nos primeiros momentos conquistou o ouvinte com um discurso em tom confidencial e uma clareza invejável para um senhor de 80 anos. Llosa quis falar sobre sua juventude e sobre sua decepção com a Utopia, a Utopia que guiou lideres e rebeliões por toda a América Latina, a Utopia da igualdade e do comunismo.

Novo livro de Llosa


Um mestre das palavras como Llosa não tem dificuldades em se comunicar. É simplesmente um dom. Nas entrelinhas de cada frase um significado, acompanhado de uma frase de efeito e uma leve pausa para a recepção da plateia. O escritor falou sobre sua juventude e de sua vida em um Perú pobre, desigual e marcado por ditaduras ferrenhas. Llosa começou contando sobre seu ingresso na Universidad Mayor de San Marcos de Arequipa, tida naquela época como resistente e rebelde ao sistema ditatorial, e também sobre a descoberta do comunismo. Sempre muito atento e um leitor nato, nunca aceitou todas as ideias do marxismo sem receio e utilizava-se da literatura como instrumento de argumentação.

Já como jornalista, Mario Vargas Llosa viu as transformações da Guerra Fria e do período pós-guerra com grandes convicções de que, por fim, na América Latina, uma sociedade mais justa se aproximava. A "Revolução Cubana" foi um marco para o continente e para a trajetória do socialismo no mundo. Era a porta aberta para uma nova sociedade, baseada nos princípios marxistas, ideologia que tanto inspirava o jovem Llosa. Por fim a América Latina, um subcontinente rodeado de indiferenças, exclusão e desigualdades, poderia alcançar uma utopia. Porém o sonho esbarrou no poder, a utopia se transformou em oasis e o escritor viu-se obrigado a repensar seus conceitos.

Por pouco mais de 30 minutos Llosa deu um verdadeiro depoimento de como o sonho do comunismo se transformou em utopia e de como a utopia o decepcionou. Contou-nos. brevemente, sobre o encontro com Fidel Castro alguns anos após a "Revolução Cubana" de 1959 e como ele enxergou nos gestos e nas palavras de Fidel o fim da crença de que o socialismo era o caminho a seguir para uma sociedade "perfeita", sociedade esta que ele veemente negou: "Não existe, é impossível uma sociedade perfeita". Em suas próprias palavras: "Como posso defender um sistema em que o pensar diferente me faz criminoso?", afirmou o escritor referindo-se a atitudes do Regime de Castro contra a oposição na ilha.

Llosa não falou sobre a amizade com o também Nobel de Literatura, Gabriel Garcia Márquez (1927-2014) e a tumultuosa briga que selou o fim  da companheirismo. Muito se fala, muito se especula, mas pelo discurso e pelo intelectual que o peruano se transformou com o passar dos anos é possível afirmar que o fim era inevitável e que as ideologias já não combinavam. Gabo viveu a utopia até a sua morte; Llosa deixou a utopia nos anos 1970 quando descobriu no liberalismo uma nova forma de ver o mundo e construir uma sociedade. E por liberais como Alberto Camus, o escritor se embrenhou em uma nova busca: uma sociedade mais justa, aberta a novas propostas e democrática. Llosa ainda falou sobre sua experiência vivendo em Londres nos anos de governo da polêmica Margaret Thatcher.



No fim deixou a plateia com um gosto de quero mais e a verdadeira certeza que independente das ideologias, Llosa se transformou em um dos maiores pensadores e estudiosos sobre a América Latina e suas indiferenças e intensas lutas. Não falou sobre seu novo livro "Cinco Esquinas", que também deve lançar durante a semana em Santiago, mas foi muito simpático com os estudantes e admiradores (me incluo aqui) que o tietaram no final do evento.

Neste mesmo dia, em que descobri alguns autores com o peruano, passei pela biblioteca pública interessado em uma nova forma de pensar: o liberalismo. Não que Llosa tenha me convencido ou me aconselhado a fazê-lo, mas quando as utopias já não dão conta do recado é preciso olhar para todos os lados. É na busca da perfeição que está o sonho; é na realidade que o homem esbarra na decepção. Esse foi o dia em que realmente conheci Mario Vargas Llosa.