Era
uma manhã fria de domingo, uma manhã em que o outono começava a mesclar-se com
o inverno e o ar era seco e cortante. Permitiu-se acordar um pouco tarde, nas
horas seguintes ao almoço. Havia bebido além da conta no dia anterior, 14 de
novembro, e uma dor de cabeça inconfundível de ressaca teimava em martelar,
querendo ganhar vida, almejando estragar as poucas horas do fim de semana que
ainda restavam. Demorou-se alguns
minutos até tomar a decisão de sair da cama para começar suas tarefas diárias e
resolveu que antes de tudo tomaria um café, sem açúcar como era seu habitual.
Vestiu-se e com a dor-de-cabeça aumentando saiu para comprar o café e o jornal
do dia. Não desejou “bom dia” ao porteiro, como sempre fazia, apenas passou
evitando olhares e conversas desnecessárias. Só queria um pouco de paz.
O
dia estava incomum para um domingo frio: muita gente na rua, muito barulho.
Comprou o New York Times pensando no seu apartamento quente e na possibilidade
de passar o resto do dia na cama. Não escreveria naquele dia. Já haviam passado
dias desde a última vez que escrevera uma única frase completa. Não sentia
vontade, simplesmente não queria. As coisas não funcionavam assim para ele, e
nas últimas semanas evitava o máximo possível às ligações do seu editor.
Voltou
ao apartamento aliviado, sentou-se na cozinha que não limpava desde “não se lembrava
quando”, e deu uma passada de olho pelas manchetes do dia. O ano de 1959 seguia
sem grandes acontecimentos. O mundo continuava a se dividir entre heróis (americanos,
capitalistas) e vilões (russos e comunistas). Tudo parecia seguir o rumo de uma
nova guerra. Alheio, ao menos naquele domingo de ressaca, às notícias
políticas, o olhar de Truman Capote passava rapidamente pelas páginas do jornal,
enquanto bebericava o café forte e sentia o aroma fresco; a língua queimando.
Um estranho que o visse de longe imaginaria que ele estava atento a tudo, menos
às páginas que folheava sem vontade. Era uma figura estranha, sentada em uma
cozinha suja e caótica, com um copo descartável de café e um olhar frio. Era
difícil imaginar que daquela cena nasceria um dos maiores livros já publicado
na história americana.
Enquanto
as grandes manchetes não lhe chamavam a atenção, uma pequena nota isolada em
uma página perdida, sem muitos atributos, o fez mudar de posição na cadeira e
deixar o café de lado ao menos por um minuto. Eram dois parágrafos sucintos que
descreviam a chacina de uma família no interior do Kansas, estado do centro dos
Estados Unidos. Uma família inteira assassinada por poucos trocados, de forma
brutal e aparentemente sem deixar marcas. Não muito diferente de outros casos
que o New York Times já noticiara outras vezes.
Mas
foi ali, na tragédia de uma família tipicamente americana, que Capote encontrou
vestígios para escrever um dos livros mais emblemáticos do jornalismo e da
literatura mundial. Polêmico e desempenhando o papel de jornalista 24 horas por
dia, Capote passaria os próximos seis anos de sua vida envolvido naquela
história de arrepiar. Uma triste realidade que saiu do anonimato de uma
minúscula cidade qualquer para se transformar num relato único e pavoroso.
***
É
impossível falar de “A Sangue Frio” sem citar o seu polêmico autor, Truman
Capote. Ao ler a pequena notícia sobre a chacina de uma família, o jornalista
percebeu que ali nascia a oportunidade de fazer o trabalho da sua vida:
Inaugurar o romance de não-ficção. Entre as polêmicas que envolvem o livro e a
vida de Capote, a criação de um novo gênero jornalístico (ou seria literário?)
é uma das mais questionadas. Muitos afirmam que o romance de não ficção já existia,
praticada na mesma revista em que trabalhava Capote, a The New Yorker. Décadas
antes John Hersey havia publicado a grande-reportagem (que também se
transformou em livro) Hiroshima (1946), que contava o relato de sobreviventes
às bombas de Hiroshima e Nagasaki no Japão, durante a segunda guerra mundial.
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Truman Capote |
O
jornalismo de não-ficção, também
conhecido como New Journalism ou
Jornalismo literário é um estilo que, de forma a simplificar-se o significado,
mistura preceitos jornalísticos (apuração, entrevistas, informações, etc) com
literatura, relatando um fato de forma, muitas vezes, mais aprofundada,
baseando-se em características psicológicas, descrevendo cenas, lugares, pessoas,
etc. O texto é mais longo e é permitida uma visão pessoal do jornalista.
Existem várias vertentes do estilo e muitos escritores se fizeram famoso
escrevendo esse tipo de literatura, como por exemplo, Tom Wolfe, Gay Talese e
Gabriel García Márquez.
A Sangue frio é o resultado de cinco anos de
apuração, entrevistas e, por que não, impressões pessoais de Truman Capote
sobre a tragédia da família Clutter, assassinada no dia 14 de novembro de 1959
na pequena cidade de Holcomb, Kansas. Truman chegou à cidade cena do crime
apenas alguns dias depois da tragédia, e passou anos no local, entrevistando
conhecidos, vizinhos, investigadores e os próprios assassinos da família. Em
seu relato, ele deixa transparecer o psicológico de Perry Smith e Dick Hickock, os criminosos, revivendo
a infância e os traumas dos mesmos. Sabe-se que Capote foi o único com acesso
aos criminosos quando ambos já estavam condenados ao corredor da morte. Neste
ponto há uma crítica com relação a postura profissional de Capote. Seus
críticos afirmam que a relação do escritor com os assassinos passou do campo
profissional e tornou-se pessoal, especialmente com Perry Smith; há “teorias”
de que ambos mantiveram um caso no período em que Smith esperava a sua
condenação.
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Em ordem: Perry Smith e Dick Hickock |
O
fato é que, apesar das polêmicas e das críticas à postura ética de Capote, A Sangue Frio não é apenas um relato cru
da cena de um crime, é um romance que se embrenha pela própria sociedade
americana, se aprofunda na mente psicopata e, por que não, na justiça americana
daquela época.
O
livro começa antecipando o principal fato da história: o assassinato dos quatro
membros da família Clutter. Aos poucos você vai conhecendo a rotina de uma das
famílias mais queridas e respeitadas daquela comunidade; vai se acostumando com
a simplicidade de Holcomb (que espera o correio jogado pelas portas de um trem,
que nem sequer para na cidade). Você só conhece os detalhes dos assassinatos no
mesmo tempo em que os investigadores vão descobrindo pistas e fatos sobre o
fato. Os assassinos não são um segredo para o leitor, que nas descrições de
Capote vai “entendendo” as motivações de Smith e Hickock. Truman vai fundo e
busca explicações nos traumas dos criminosos. Aqui vale um parêntese. A
narrativa do livro te leva a crer que Perry Smith, apesar de ter assumido ter
atirado nos quatro membros da família, não é o “malvado” da história. Com uma
história triste e pobre, Smith é encorajado todo o tempo por Dick a realizar o
ato de crueldade. Muitos acreditavam na insanidade de Perry, e alguns críticos
afirmam que conhecendo Smith como conheceu, Capote podia ter testemunhado em
favor da “loucura” do assassino. Uma questão ética entra em pauta: até que
ponto o jornalista pode interferir nos fatos?
Fugindo
um pouco das polêmicas, A Sangue Frio segue
uma narrativa precisa, onde cada detalhe é exposto e explicado, onde os
personagens secundários te ajudam a compreender a realidade de Holcomb e como
viviam os Clutter. Você é inserido na história e em alguns momentos é possível
que surja uma pergunta. Como Capote poderia saber de tantos detalhes?
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Família Clutter |
Uma
pergunta respondida em quase seis anos de trabalho, que só terminou quando os
assassinos foram enforcados em 14 de abril de 1965. Do fatídico dia em que a
rotina de Holcomb foi interrompida pelo assassinato da família Clutter ao dia
em que os assassinos pagaram por seus crimes, Capote mantém uma descrição dos
fatos incrível. É difícil não perceber características que seriam influência
para posteriores relatos de jornalismo e literatura. Os dias em que os
assassinos passaram à espera no corredor da morte foi uma possível inspiração
para Stephen King escrever um de seus livros mais famosos, “The Green Mile” (À
espera de um milagre no Brasil). Perry Smith recebia visita de um pequeno
animal em sua primeira cela. Era sua única companhia e assim como Eduard Delacroix treinava o seu ratinho de circo. Os personagens
de King também mantém certa semelhança com a descrição de Capote dos
companheiros de Smith e Dick no corredor da morte.
Ao terminar A Sangue Frio fica
uma sensação gelada no corpo. Ler o livro é como reviver aqueles dias; é
transformar-se em um observador, assim como foi Capote, do desenrolar de um dos
crimes que abalaram a América. Famílias seguiram sendo assassinadas, criminosos
seguiram manchando de sangue comunidades pacíficas por todo o mundo, mas nenhum
livro foi capaz de chocar e relatar tão bem como foi A Sangue Frio, já um ícone do jornalismo e da literatura.
No Brasil A Sangue Frio é publicado pela editora Companhia das Letras. Para quem se interessa também há dois excelentes filmes sobre a história. A primeira baseada no livro, que conta a história dos assassinos e de acordo com o enredo do livro. O filme é de 1967 e possui o mesmo título do livro. O outro filme se chama Capote (2005) e é sobre a relação de Capote com a história. Dois ótimos filmes.