Essa parte final da história nos reservou algumas surpresas e dificuldades, porém não deixou de ser maravilhosa.
" Viajar é mudar o cenário da solidão."
Mario Quintana
Chegamos a Puno, na fronteira entre Peru e Bolívia, no final da tarde. Tínhamos a indicação do simpático senhor do albergue de Cuzco para ficarmos em um hostel. Nos dividimos em dois táxis, cada carro com cinco pessoas, e fomos para o local.
Puno é uma cidade do sudeste do Peru, com uma população de aproximadamente 120 mil habitantes. É uma das cidades mais altas do mundo, com altitude de 3.800 metros. É famosa pelo Lago Titicaca, uma das fronteiras da cidade, e pela misteriosa Ilha dos Uros: indígenas que sobrevivem no meio do lago.
Catedral de Puno, Praça de Armas da cidade |
Chegamos ao hostel que tinha uma boa aparência, apesar de ficar em um bairro afastado. Era limpo e organizado. Nos acomodamos e estávamos mortos de fome. "Não tem nada aberto a essa hora em Puno". Essa foi a resposta à nossa fome dada pelo dono do lugar. A noite seria ainda mais longa do que imaginávamos, quando uma de nossas companheiras se deu por falta da pochete com o dinheiro e documentos de sua família, composta por três dos dez integrantes.
Vista da Cidade de Puno a partir do nosso hostel. No fundo o Lago Titicaca |
Passar por uma situação de roubo ou perda longe do nosso país é complicado. Os chilenos falam a mesma língua que os peruanos, porém, o Peru não é o Chile. As coisas por lá andam um pouco mais devagar. Em Puno as autoridades não parecem estar acostumadas com situações desse tipo, mesmo a cidade sendo um polo turístico do país. Decidimos nos dividir e buscar o taxista que nos trouxe. Eu estava no outro taxi, então, não pude ajudar muito. Sem documentos, nossa ida para a Bolívia estava ameaçada.
A polícia não pôde fazer muita coisa, apenas registrar o boletim de ocorrência, e de forma calma lamentar o fato. Em uma cidade onde os táxis não são registrados por setor, foi impossível encontrar o taxista que, provavelmente, ficou com a pochete. O dinheiro deles se reduziu a zero. Foram cerca de R$1.500,00.
Depois dos problemas da noite, ainda sobrava a fome. O único lugar aberto àquela hora na cidade era uma lanchonete. Mesmo com preços baratos, a fome revelou nossa nova situação: economia. Queríamos continuar viajando, e todos juntos. Não podíamos gastar dinheiro com bobagens, já que três de nós precisariam de ajuda.
Depois dos problemas da noite, ainda sobrava a fome. O único lugar aberto àquela hora na cidade era uma lanchonete. Mesmo com preços baratos, a fome revelou nossa nova situação: economia. Queríamos continuar viajando, e todos juntos. Não podíamos gastar dinheiro com bobagens, já que três de nós precisariam de ajuda.
...
Contratamos um tour para a famosa Ilha dos Uros para o dia seguinte, em um preço de R$30,00 por pessoa. O tour foi comprado na rodoviária da cidade, assim que chegamos. Como tudo no Peru, ele foi reduzido a cada nova agência que nos aliciava. Ele incluía transporte de van e barco até a ilha e depois também incluía nossas passagens para Copacabana na Bolívia. Apesar do problema do "perda-roubo" dos documentos, ainda tentaríamos a viagem para o país de Evo Morales. Depois das atribulações, o jeito era dormir.
Antes de relatar a nossa experiência na Ilha dos Uros, vou falar um pouco sobre o lago Titicaca.
O Lago Titicaca está situado na fronteira entre Peru e Bolívia e está localizado na região do altiplano dos Andes. Tem cerca de 8.300 m²; situa-se a 3.821 metros acima do mar, é o lago comercialmente navegável mais alto do mundo; conhecido pelas suas ilhas, o seu nome vem do quíchua e aimara, línguas indígenas da região, significando "Pedra do Puma", pois segundos moradores, o lago tem o formato de um Puma gigante.
Mapa do Lago |
Pegamos um ônibus, no qual nos juntamos com outros estrangeiros para então tomar um pequeno barco para chegar até as ilhas. A viagem pelo lago, que durou pouco mais de 40 minutos, reservou algumas vistas maravilhosas e uma expectativa grande. O clima estava gostoso, sem frio e sem calor, apesar do sol. Eu não sabia nada dos Uros, portanto estava ansioso para saber como eram e viviam.
Pouco antes de tomar o barco para os Uros |
O clima estava perfeito naquele dia |
Minha surpresa foi grande ao encontrar no meio daquele imensidão de água, ilhas feitas de uma espécie de palha, além de barcos, casas e tudo o mais feitas do mesmo material. Desembarcamos nas ilhas dos famosos Uros.
Chegando âs Ilhas flutuantes dos Uros |
Os barcos feitos de totoras levam os turistas |
Nativa dos Uros, vestida com as fortes cores peruanas a espera dos estrangeiros |
Uros são as ilhas artificiais e flutuantes do Lago Titicaca, no Peru e na Bolívia. Feitas pelos nativos, elas existem desde antes dos colonizadores europeus chegarem a essa região. Os Uros são feitos a base de totoras, uma planta aquática típica da América do Sul. Na verdade não só as ilhas flutuantes são feitas do material, mas as casas, os barcos e a totora também é fonte de alimento e artesanato para os nativos.
Para manter a ilha flutuando é necessário constante manutenção. Os "Uros" vivem de pesca, caça, e artesanato. Com as atividades turísticas aumentando muito nos últimos anos, o turismo também é uma nova fonte de renda.
Nosso guia é habitante das ilhas, mas falava um inglês engraçado e um espanhol estranho, fora a língua nativa deles. O inglês dele era engraçado, pois ele sempre repetia: " Hi, my friends", a mesma frase repetida em espanhol " Hola, mi amigos". Sabíamos que ele ser trilíngue era uma grande conquista, mas não deixamos de reparar nesse detalhe.
Nosso guia e seu "Hola, mis amigos" |
Ele nos explicou, muito bem por sinal, como era a vida deles nos Uros. Nos contou a história daquele lugar ermo ( solitário ) e de seus habitantes e sua vida simples. As várias ilhas dependem hoje quase exclusivamente do turismo e das atividades de pesca e caça. O governo peruano não os auxilia, assim nos contou o guia. Ele demonstrou como caçam, e como as "ocas" são construídas com as totoras e nos ofereceu um pedaço da planta. O gosto é quase nulo. É como "comer" água.
Os habitantes vendem aí mesmo seus artesanatos. Uma das ilhas funciona como centro comercial. Lá você encontrará lojas de artesanato, um pequeno bar e também, caso se interesse em passar alguns dias convivendo com os nativos, uma oca para dormir. É fantástica a organização deles.
Nativas vendem seus artesanatos aos turistas |
Apesar do constante fluxo de turistas, não são todos os nativos que estão acostumados com a agitação. Uma anciã nos afastou da proximidade de sua "casa", e não nos permitiu tirar fotos, a não ser que pagássemos. Nós éramos os intrusos, ela estava certa.
A anciã não aceitava turistas na sua oca, nem fotos sem pagar |
Para finalizar, o tour oferecia pelo valor de mais R$7,00 uma volta no barco feito de totora, mas como estávamos economizando resolvemos dispensar. Voltamos para Puno fascinados com aquele modo de vida e preocupados com nosso próximo destino: a Bolívia.
Dentro das Ocas |
O barco leva os turistas pelas ilhas flutuantes |
Crianças dentro de uma lojinha de artesanato |
Sem notícias do que nos foi roubado, partimos para Bolívia, com promessa da polícia peruana que não teríamos problema na fronteira. A viagem de pouco mais de uma hora e meia foi quente. Chegamos na fronteira com o Peru e a Bolívia sob um sol ardente. Os trâmites deveriam ser feitos nos dois países.
Foto de despedida na Ilha dos Uros |
Apressados pelo motorista peruano, que não era nem um pouco simpático, tentamos fazer tudo o mais rápido possível. Trocar a moeda peruana pela boliviana e a liberação para entrada na Bolívia. Nesse momento deve-se ter cautela. Essa região de fronteira é perigosa, e muitos se aproveitam dos estrangeiros para oferecer dinheiro falso. Faça tudo com cuidado. Tive que auxiliar muitos estrangeiros que não entendiam as ordens dos bolivianos apressando o fluxo de pessoas. Minhas aulas de inglês foram um bom investimento.
Resolvido os meus trâmites, eu esperava, já na Bolívia o restante do grupo. O ônibus já nos aguardava. Só faltava o nosso grupo. Pasmos ficamos quando descobrimos que os três que foram roubados não poderiam ingressar no país. O documento expedido pela polícia peruana não servia de nada, já que eles tinham uma filha menor, e não possuíam comprovação que eram os pais da mesma. Estávamos perdidos. Os bolivianos não entenderam nossa situação e estavam estressados. Estávamos "presos" ao Peru.
Na fronteira entre Peru e Bolívia |
Ficamos naquela situação incômoda por alguns minutos. Foi um momento triste. Todos os estrangeiros nos olhavam pelas janelas do ônibus, imaginando o que se passava. A pobre da Jo, a filhinha da Javi e do Pablo, o casal roubado, chorava. Não os deixaríamos ali no meio do nada. O que fazer em uma situação assim?
O motorista do nosso ônibus veio falar com nós e fez uma proposta: a de entrarem ilegais. Aquilo parecia loucura, mas nós tínhamos sido injustiçados. Recusamos a proposta. O motorista, nervoso, se foi. Nosso ônibus saía lentamente e nós ficamos, observando ali parados, entre Bolívia e Peru, sem sabermos o que fazer. Até que chegou uma peruana e nos disse:
" Não sejam bobos, vão pra Copabacana. Quando voltarem, finjam que nunca saíram do Peru. Vocês só não vão ter o documento de saída e entrada no país, porém a fiscalização é péssima. Muita gente faz isso aqui. "
Pensamos na hipótese. Realmente a fronteira era má fiscalizada. As pessoas passavam andando sem nenhum problema, só os que iam direto pra polícia boliviana que tinham que mostrar documentos.
" Vão logo, ônibus de vocês ainda está ali "- nos alertou a velha senhora.
Nos olhamos e nossos olhar confirmou a decisão: Iríamos sim pra Bolívia. Corremos, escondidos e com medo, de volta para o nosso ônibus. O motorista abriu a porta e o bagageiro para colocarmos novamente nossas malas. Ninguém parecia nos observar. Combinamos que o trajeto de volta seria feito pelo mesmo condutor, e ele faria exatamente a mesma coisa: Deixaria nossos amigos sem documentos na fronteira, enquanto o restante de nós fazíamos os trâmites. Se alguém perguntasse a eles, nunca saíram do Peru, e a documentação iria apenas confirmar isso. Pagamos um valor de R$30,00 de "gorjeta" ao motorista e seguimos mais aliviados, porém ainda com medo, para Copabacana.
Ufa. O coração bateu mais rápido, a adrenalina correu na veia e a aflição foi vencida. Era hora de descansarmos o corpo e a mente. Enfim, na Bolívia.
Bolívia é um país do centro da América do Sul. Um dos poucos sem acesso ao oceano, território perdido em uma guerra que envolveu Chile e Peru, a Guerra do Pacifico. Tem uma população de pouco mais de 10 milhões de habitantes e a capital é Sucre ( governo ), ou La Paz ( administrativa ). Sua população é bem mesclada e possui uma cultura indígena muito forte. É também o país mais pobre da América do Sul, e muitos bolivianos vão para São Paulo aí tentar uma vida melhor.
Copacabana, também tem praia, assim como a correspondente carioca, porém é uma praia banhada pelo lago Titicaca. Uma cidade cheia de turistas, que assusta um pouco a noite. Saímos a procura de um bom lugar para nos hospedar. Mortos de fome e cansaço, a tarefa não foi fácil. Os preços eram mais baratos que no Peru, porém não ofereciam muita higiene e a maioria não tinha banho quente.
Depois de percorrermos várias hospedagens, decidimos ficar em uma no centro de Copacabana que oferecia o que precisavámos. No outro dia faríamos o famoso passeio até a Ilha do Sol ( não a mesma da canção do Netinho ), precisávamos comer e descansar.
Vista da rua do nosso hostel |
Igreja no alto do Morro, em Copacabana |
"praia" |
Fizemos uma boa refeição em um restaurante barato e lotado na cidade. Pagamos uma bagatela de R$10,00 pela entrada + prato principal.
Ficamos surpresos quando o garçom veio nos atender. Ele não tinha mais do que 10 anos. Parecia cansado, mas não podíamos fazer nada. Aquele não era o nosso país, muito menos nossa cultura. O trabalho de crianças na Bolívia infelizmente é uma realidade que assusta. Em agências de turismo, restaurantes ou nas ruas da cidade é muito fácil encontrar meninos que estão em idade escolar, trabalhando.
Depois de jantarmos percorremos um pouco a cidade. Ficamos um pouco receosos com a hospitalidade do lugar. Não posso julgar um país inteiro por um punhado de pessoas, mas em Copabacana, não parecíamos bem-vindos. Os chilenos foram insultados em alguns momento nas ruas: " Chilenos de mierda", e o olhar impaciente dos vendedores ao perceber a procedência dos meus amigos era visível.
Talvez essa situação se "justifique" com as recentes tentativas da Bolívia de reaver o pedaço de terra que se julga seu por direito. O sonhado acesso ao Oceano Pacifico que tanto faz falta para o país de Evo Morales, está sendo discutido na Corte Internacional de Justiça, em Haia. Não poderíamos deixar uma desavença política destruir nossa viagem, então, fizemos pouco caso dos ocorridos.
Percorremos a noite boliviana e o seu ar indígena e artesanal, e por volta das 11 da noite nos retiramos. Precisávamos descansar para os últimos dias de nossas viagem. Aquele dia tinha sido muito esgotante.
" Pior que não terminar uma viagem é nunca partir."
Amyr Klink
amei!
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