quinta-feira, 5 de maio de 2016

O agridoce bafo do dragão



Ainda tenho as últimas palavras de “O Gigante Enterrado” flutuando na minha memória quando começo a escrever esta resenha. Permeia também uma sensação de encantamento, nostalgia e a certeza de ter terminado um daqueles livros que demoram em partir, que nos deixam órfão.

Passaram-se 10 anos desde o último romance de Kazuo Ishiguro, “Não me abandone Jamais”, mas o escritor permaneceu presente com as excelentes adaptações para o cinema de seus livros e uma crítica ansiosa por um novo romance. Nascido no Japão, Ishiguro se mudou para a Grã-Bretanha ainda menino e de lá  provém suas grandes influências. Talvez o fato de ter crescido entre duas fortes culturas o tenha transformado em um artista único. A literatura de Kazuo é uma mistura do sútil e da nostalgia, e em “O Gigante Enterrado” ganha um novo ingrediente: a fantasia.

Em uma terra amaldiçoada por uma misteriosa névoa que causa um esquecimento coletivo, um casal de idosos, guiado pela intuição e por um desejo incompreendido de buscar o filho perdido, parte em uma jornada por uma terra assolada por recentes guerras e ameaçada por uma dragoa.

A narrativa caminha aos passos de Axl e Beatrice, o casal protagonista, e a história flui com lirismo e incríveis descrições de uma Grã-Bretanha que respira ares de paz, ao mesmo tempo, convive em um ambiente de iminente caos. A todo momento somos levados a refletir sobre o poder da memória e a influência que ela nos causa. A jornada dos protagonistas é guiada por lembranças que vão surgindo durante o percurso. Lembranças de guerras passadas, memórias do filho que se foi, recordações de antigos conflitos pessoais.  Axl e Beatrice fortalecem um amor que, mesmo no esquecimento, continuou vivo, nos fazendo questionar qual o poder da memória na nossa vida?



Outros personagens surgem no caminho do casal. O jovem Wistan e o garoto Edwin dão um tom de maior ação ao enredo e recriam a imagem de guerreiro, com suas batalhas de espadas e o jeito de herói. Já Gawain e seu fiel cavalo Horácio são tipicamente “quixotianos” e, ao mesmo tempo, transbordam um humor e apatia nata de um fiel escudeiro do Rei Arthur.  O dragão - que neste caso  é uma dragoa - é a motivação do aparecimento dos guerreiros e das desavenças entre saxões e bretões.
É no  agridoce bafo de Querig que àquele mundo fantástico se mantêm vivo e os conflitos enterrados. É no sono do dragão que a aparente paz dorme sob cautela e sob túmulos de gigantes.

É importante destacar também o poder que Ishiguro tem na construção de metáforas. O segredo é  não se afobar durante a leitura. Muitas cenas e personagens se fazem compreender no percurso, já que o livro é uma grande metáfora sobre o amor, a guerra e a morte. 

A história de Ishiguro já foi comparada "As crônicas de Gelo e Fogo" (que deu origem à adaptação da HBO Game of Thrones), comparação esta com a qual não posso concordar plenamente, já que vejo em "O Gigante Enterrado" muito mais de Cervantes e Tolkien do que de Martin. A leitura é sutil, pautada mais nas relações humanas e nas descrições do que no próprio enredo. A fantasia é o pano de fundo para a construção dos personagens e os conflitos totalmente internos.

É com este cerne que a história se desenvolve; na busca pelo filho e pelas lembranças, Axl e Beatrice enfrentam fadas, monges, cavaleiros. Passam por lugares lúgubres, aldeias, montanhas, lagos e a cada novo passo a personalidade de ambos desabrocha, revelando que as memórias também podem reavivar desavenças e antigos remorsos.

Arrisco a dizer que muitas pessoas não conseguirão captar bem a essência da obra ou a sutileza da escrita. O livro tem diálogos que aparentam simplicidade, mas são  a gênesis da construção dos significados que a obra almeja. É uma história sobre a memória coletiva, sobre como nos guiamos por nossas recordações e experiências e acima de tudo é um livro que fala de amor, do desapego e do seguir adiante. O livro consegue ir longe, além de seus significados enterrados. "O Gigante Enterrado" é, com toda certeza, um livro para guardar na memória.

quarta-feira, 4 de maio de 2016

Resenha: As Mixtapes de Ben - Raphael Cardoso




Qual é a razão de ler um livro? Em que nos fixamos para escolher qual a próxima leitura? Enredo, autor, personagens, capas, formato? É uma pergunta um tanto quanto pessoal. Eu, por exemplo, geralmente compro livros de autores que conheço ou que tenho indicação de algum amigo. Confesso que já “comprei o livro pela capa” e até o cheiro (sim, eu sou um cheirador de livros, rs) já me influenciou. Enveredar-se por uma nova história, no meu caso, exige uma boa ambientação. Talvez seja este o motivo do meu receio com livros digitais. Sei que o avanço tecnológico é inevitável, mas ainda prefiro o físico, o livro em si. Mas, por que esta discussão? O livro em questão, razão desta resenha, é um livro escrito e divulgado por um meio eletrônico, o WattPad.

Para quem não conhece, o Wattpad é uma comunidade on-line de escritores e leitores, onde o usuário pode publicar suas próprias histórias, textos, poemas, etc, além de ter uma infinidade de opções de leituras, com temas e formatos diferenciados de autores conhecidos ou não. O diferencial é que ele também pode ser acessado por um aplicativo via celular disponível gratuitamente, permitindo assim uma maior interação com o escritor ou outros leitores. É uma ferramenta incrível neste novo cenário tecnológico, mesmo para aqueles que como eu, ainda preferem a leitura comum.

Conheci a comunidade por uma amiga (e também co-autora desta resenha). Ingrid (prefiro chamá-la de Lola) vinha me influenciando a ler algo por ali a algum tempo, mas eu tinha meus receios (e por quê não, preconceitos?). Depois de alguns argumentos ela conseguiu me convencer e eu  resolvi dar uma chance para “As mixtapes de Ben”, meu primeiro contato com o WattPad.  A velocidade em que li a história foi incrível. Li pelo aplicativo, e apesar de não sentir a textura e o cheiro de livro, me senti muito próximo da história. Antes de falar um pouco do livro, segue uma pequena sinopse disponível na abertura da história:
Benício grava em fitas-cassete retratos sonoros de sua vida. Teria dificuldade, entretanto, para harmonizar canções que simbolizassem todas as atribulações por que  passaria no fim dos anos 90, entre passeios à locadora, tamagotchis e boybands.
A adolescência impulsiona Ben a um mundo novo, no qual precisa lidar com a sexualidade não aceita pelo pai e a dificuldade de um amor à distância, com a desconfortável vida escolar, e os tropeços inevitáveis dos relacionamentos humanos. Auxiliado por Bia, a melhor (e única) amiga, Ben traça um plano para, em 30 dias, encontrar-se com sua paixão à distância, o que desencadeia uma busca pela coragem de se tornar quem realmente é.
Com a nostalgia, as canções e as cores dos anos 90 de pano de fundo, As Mixtapes De Ben é uma narrativa simples e empolgante sobre crescer, amadurecer e se aceitar.”
Em primeiro lugar é preciso ambientar bem a história. Ela se passar em uma cidade do interior, em uma época em que whatsapp, facebook, aplicativos de celular e a infinidade de facilidades que temos hoje não existiam. A história de Ben inspira nostalgia desde o primeiro momento, quando nos deparamos com um garoto esperando uma chamada em frente a um orelhão. Aos poucos, especialmente para quem viveu um pouco daquela época, você vai se ambientando aos anos 90 em um Brasil respirando redemocratização, dançando É o Tchan! até o chão, mas que ainda preservava tons conservadores das décadas anteriores. Se hoje, assumir-se gay não é nada fácil, imagina a 20 anos atrás. E para um adolescente como Ben, com uma alma tranquila e romântica, mas um tanto ingênua as coisas não são nada fáceis. Ele precisa conviver com a pressão familiar de ser e tornar-se um homem, fazendo “coisas de homens” e com a figura de um pai visivelmente preconceituoso e machista. Naquela época, arrisco eu a dizer, a palavra homofobia não era tão vinculada e discutida como atualmente, mas se temos um adjetivo para o que o pai de Ben, é homofóbico. Já a mãe, apesar da amorosidade, é submissa ao autoritário marido, até o momento em que o amor pelo filho a transforma em corajosa. O ciclo familiar termina com a irmã que é uma mescla entre a personalidade do pai, conservador, e da mãe, submissa. É neste ambiente que parte dos conflitos de Ben se desenvolve, conflitos que são, ainda hoje, muito comuns nos lares brasileiros. Deve haver várias histórias parecidas ou até mais dramáticas pelo país afora. Apesar de esta ser uma resenha, não pretendo antecipar os fatos da história. A ideia é instigar (assim como a Lola me instigou) a ler, portanto, aqui temos um conflito: pai homofóbico, filho gay, família instável e muitos preconceitos a serem batidos. Lembrando que estamos nos anos 90, em uma cidade do interior, em uma família conservadora.

Outro conflito vivido por Ben é na escola, conflito que é muito comum para os adolescente gays: viver com as constantes chacotas, piadas e saber que você não se encaixa naquele padrão que lhe é imposto desde o jardim de infância. Essa situação torna imperativa a necessidade de discutir a homofobia nas escolas, assim como é preciso discutir todos os preconceitos. Nossa sociedade é preconceituosa e existe cura para isso: conhecimento. Durante a leitura refleti muito sobre as cenas que o livro retrata. Ben é vítima do preconceito pelos colegas e a todo tempo é humilhado com especial raiva por Nelson, um ex-colega do garoto que, a meu ver, esconde uma homossexualidade enrustida. Eu posso dizer com propriedade que é no ambiente escolar que o medo de ser “diferente” se fortalece, pois nosso sistema, infelizmente, recria preconceitos e estimula a “pseudo-normalidade”.
 
Mas a história de Ben é também, e sobretudo, uma história de amor, que dentre vários, é o grande mérito da história. E em um ambiente desesperado de alguém que procura outro como a si que nasce o carro chefe das “Mixtapes de Ben”. Todo esse tom de notalgia e essa coragem que nasce no protagonista são frutos de um amor, um amor juvenil daqueles que parecem único. Da troca de cartas, das ligações no orelhão e do anseio de um primeiro encontro, o namoro vai se enraizando e se fortalecendo a cada capitulo e de repente você está tão ansioso quanto Ben em conhecer Otelo, o “mouro” carioca e um dos trunfos de Raphael Cardoso (autor) como personagem. Otelo é um gay sábio (talvez por conta de sua própria vivência), e um pouco mais velho, que conhece a problemática de ter uma condição sexual não aceita e é ele que ajuda Ben a passar pelos desafios em se assumir e enfrentar o mundo. Otelo tem o que falta no protagonista, uma coragem racional e evoca um sentimento de segurança. Ao mesmo tempo, é nas mixtapes de Otelo que o autor nos brinda com algumas das páginas mais líricas e marcantes da obra.  A relação a distância dos dois se fortalece com as mixtapes que ambos gravam em cassetes para o outro e que ajudam o relacionamento a fluir. Você acaba descobrindo uma nova forma de ler um livro (que só um aplicativo como o WattPad pode permitir). A história te dá novos formatos de leitura e enquanto você devora cada capítulo, o link com a mixtape daquela parte da história é a trilha sonora que dá sabor aos fatos. Cada nova mixtape que o livro nos apresenta é a descoberta de personagens (ou será o autor?) com um gosto musical excelente e que dão ritmo ao enredo, embalado ao som de Mazzy Star, Portishead, Simon and Garfunkel, Smashing Pumpkins, Jeff Buckley, Alanis Morissette, entre outros. É preciso mergulhar na história,  deixando-se levar pela música das mixtapes e pelo tom de juventude dos personagens.

Um dos pontos fortes e talvez o melhor capítulo é o primeiro encontro de Ben e Otelo no Rio de Janeiro. O autor soube descrever bem as paisagens cariocas, sempre com os tons soturno e nostálgico que dão ritmo ao livro, e fez do primeiro encontro deles inesquecível.

Apesar das mixtapes girarem em torno do romance a distância de Ben e Otelo, existe um terceiro personagem que dá outro tom à história: Heitor. Atrevido, protetor e seguro de si, Heitor é um companheiro de sala de Ben que o acaba ajudando em uma das várias situações de constrangimento que o preconceito gera na vida do garoto. Uma fagulha de amor nasce das situações que enfrentam juntos e entre a presença e ausência, Ben terá que descobrir o melhor caminho para o seu jovem coração.

Acredito que os três pilares das “Mixtapes de Ben” estão apresentados, lembrando que a história se desenvolve com outros personagens também, como o professor Hermes (imprescindível na trama em vários momentos) e a melhor amiga (e fiel escudeira) de Ben, Bia.

Foi uma nova experiência de leitura. Diferente, prazeroso e eficaz, o texto de Raphael Cardoso é ágil, dosado e poético. Às vezes é um pouco exagerado nas descrições e dramático nos diálogos, talvez pelo tipo de público e pela forma como a história foi escrita (capítulos publicados periodicamente). Nos poucos momentos que perdi o ritmo  foi pelo cansaço de ter quase sempre a visão de Benício do enredo (claro, a história é dele, mas às vezes poderia haver um respiro maior) ou porque me sentia lendo um roteiro de Malhação com todos os dramas sendo do protagonista. Entretanto, no final a história é ótima e deixa uma sensação nostálgica incrível. Revivi a época das locadoras de vídeo, dos cassetes, de jogar pokemon no game boy. Me lembrei um pouco  daquela sensação de interior, das tardes tempestuosas com bolinho de chuva, dos banhos na cachoeira ou das tardes quentes com os amigos. Também revivi minha época de vencer meus próprios preconceitos, dos dias em que uma piada destruía meu dia e quando tive o valor de assumir-me como sou. Por tantas lembranças e por uma história assim, valeu a pena deixar um pouco o livro físico de lado e se enveredar por essa ferramente incrível. Eu mesmo a alguns anos atrás era um poeta relativamente conhecido no Nyah (rede social de fanfictions).

Para finalizar bem esta resenha não poderia faltar minha própria Mixtape, feita especialmente para os que chegaram ao final do texto, rs. Portanto, feche os olhos. Imagine que este texto no  computador (ou celular) é uma carta de um velho amigo indicando um livro. Junto a carta chega também um cacete com 10 músicas desconhecidas. Você se deita e saboreia cada canção (não se esqueça de dar volta no cacete para o lado B). Aí está o cenário para ler uma boa história. Clique no link abaixo para escutar a seleção:

quarta-feira, 27 de abril de 2016

O dia em que conheci Mario Vargas Llosa


No dia em que conheci Mario Vargas Llosa o frio era tão forte que cortava meu rosto desabrigado e seco. Eu caminhava apressado pelo centro de Santiago do Chile, ansioso por chegar à cerimônia de agraciação do intelectual como Doutor Honoris Causa pela Universidade Diego Portales, uma das mais prestigiosas do Chile.

Poucos dias antes havia lido uma entrevista do escritor peruano ao jornal "El País" na qual ele se declarava a favor do impeachment da presidente brasileira Dilma Rousself. Na entrevista ele afirmava não saber muito do caso, mas acreditava que se o impedimento fosse legítimo, ele deveria ocorrer e via o que ocorria no Brasil como um exemplo "democrático" para a região. A opinião não me intrigou, pois já reconhecia em Llosa um crítico dos governos populistas que se instalaram na última década em alguns países da América Latina, entre eles o Brasil. O que me levava a acordar cedo em uma terça-feira fria era mais do que a curiosidade de conhecer um escritor famoso, era o desejo de entendê-lo e descobrir os pilares de um dos poucos nobel de literatura que nosso subcontinente recebeu.

Conheci a literatura de Llosa com "A Guerra do fim do mundo", que inspirado no livro de Euclides da Cunha, também narra a Guerra de Canudos no sertão baiano. Fiquei intrigado com a perspicácia do escritor em mesclar personagens reais e fictícios e no conhecimento sobre o conflito. Segundo palavras do mesmo, Canudos é um reflexo da América Latina e seus conflitos internos. Apesar da qualidade do livro, a narrativa não me fez um apaixonado por Llosa como, por exemplo, a leitura de "Cem anos de Solidão" me transformou em um leitor voraz dos livros de Gabriel García Márquez. 

Cheguei à Universidade e muita gente já se encontrava por lá. Me senti um pouco intimidado por ver tantas pessoas engravatadas, vários ministros, escritores e o ex-presidente chileno Sebastián Piñera prestigiavam Llosa. Muitos estudantes também ocuparam a plateia lotada do evento. Procurei me misturar entre eles e ser mais um observador.

Quando enfim a cerimônia começou e o reitor apresentou Llosa ao público, meus olhos se encontraram com o senhor de rosto duro e cabelo grisalho sentado de forma imponente e observando as reações da plateia. Ao ser anunciado levantou-se em meio a uma salva de palmas que não o intimidou. Passos firmes, olhar sério e um meio sorriso, o Nobel de Literatura começou sua fala e já nos primeiros momentos conquistou o ouvinte com um discurso em tom confidencial e uma clareza invejável para um senhor de 80 anos. Llosa quis falar sobre sua juventude e sobre sua decepção com a Utopia, a Utopia que guiou lideres e rebeliões por toda a América Latina, a Utopia da igualdade e do comunismo.

Novo livro de Llosa


Um mestre das palavras como Llosa não tem dificuldades em se comunicar. É simplesmente um dom. Nas entrelinhas de cada frase um significado, acompanhado de uma frase de efeito e uma leve pausa para a recepção da plateia. O escritor falou sobre sua juventude e de sua vida em um Perú pobre, desigual e marcado por ditaduras ferrenhas. Llosa começou contando sobre seu ingresso na Universidad Mayor de San Marcos de Arequipa, tida naquela época como resistente e rebelde ao sistema ditatorial, e também sobre a descoberta do comunismo. Sempre muito atento e um leitor nato, nunca aceitou todas as ideias do marxismo sem receio e utilizava-se da literatura como instrumento de argumentação.

Já como jornalista, Mario Vargas Llosa viu as transformações da Guerra Fria e do período pós-guerra com grandes convicções de que, por fim, na América Latina, uma sociedade mais justa se aproximava. A "Revolução Cubana" foi um marco para o continente e para a trajetória do socialismo no mundo. Era a porta aberta para uma nova sociedade, baseada nos princípios marxistas, ideologia que tanto inspirava o jovem Llosa. Por fim a América Latina, um subcontinente rodeado de indiferenças, exclusão e desigualdades, poderia alcançar uma utopia. Porém o sonho esbarrou no poder, a utopia se transformou em oasis e o escritor viu-se obrigado a repensar seus conceitos.

Por pouco mais de 30 minutos Llosa deu um verdadeiro depoimento de como o sonho do comunismo se transformou em utopia e de como a utopia o decepcionou. Contou-nos. brevemente, sobre o encontro com Fidel Castro alguns anos após a "Revolução Cubana" de 1959 e como ele enxergou nos gestos e nas palavras de Fidel o fim da crença de que o socialismo era o caminho a seguir para uma sociedade "perfeita", sociedade esta que ele veemente negou: "Não existe, é impossível uma sociedade perfeita". Em suas próprias palavras: "Como posso defender um sistema em que o pensar diferente me faz criminoso?", afirmou o escritor referindo-se a atitudes do Regime de Castro contra a oposição na ilha.

Llosa não falou sobre a amizade com o também Nobel de Literatura, Gabriel Garcia Márquez (1927-2014) e a tumultuosa briga que selou o fim  da companheirismo. Muito se fala, muito se especula, mas pelo discurso e pelo intelectual que o peruano se transformou com o passar dos anos é possível afirmar que o fim era inevitável e que as ideologias já não combinavam. Gabo viveu a utopia até a sua morte; Llosa deixou a utopia nos anos 1970 quando descobriu no liberalismo uma nova forma de ver o mundo e construir uma sociedade. E por liberais como Alberto Camus, o escritor se embrenhou em uma nova busca: uma sociedade mais justa, aberta a novas propostas e democrática. Llosa ainda falou sobre sua experiência vivendo em Londres nos anos de governo da polêmica Margaret Thatcher.



No fim deixou a plateia com um gosto de quero mais e a verdadeira certeza que independente das ideologias, Llosa se transformou em um dos maiores pensadores e estudiosos sobre a América Latina e suas indiferenças e intensas lutas. Não falou sobre seu novo livro "Cinco Esquinas", que também deve lançar durante a semana em Santiago, mas foi muito simpático com os estudantes e admiradores (me incluo aqui) que o tietaram no final do evento.

Neste mesmo dia, em que descobri alguns autores com o peruano, passei pela biblioteca pública interessado em uma nova forma de pensar: o liberalismo. Não que Llosa tenha me convencido ou me aconselhado a fazê-lo, mas quando as utopias já não dão conta do recado é preciso olhar para todos os lados. É na busca da perfeição que está o sonho; é na realidade que o homem esbarra na decepção. Esse foi o dia em que realmente conheci Mario Vargas Llosa.

domingo, 5 de julho de 2015

Uma História escrita A Sangue Frio


Era uma manhã fria de domingo, uma manhã em que o outono começava a mesclar-se com o inverno e o ar era seco e cortante. Permitiu-se acordar um pouco tarde, nas horas seguintes ao almoço. Havia bebido além da conta no dia anterior, 14 de novembro, e uma dor de cabeça inconfundível de ressaca teimava em martelar, querendo ganhar vida, almejando estragar as poucas horas do fim de semana que ainda restavam.  Demorou-se alguns minutos até tomar a decisão de sair da cama para começar suas tarefas diárias e resolveu que antes de tudo tomaria um café, sem açúcar como era seu habitual. Vestiu-se e com a dor-de-cabeça aumentando saiu para comprar o café e o jornal do dia. Não desejou “bom dia” ao porteiro, como sempre fazia, apenas passou evitando olhares e conversas desnecessárias. Só queria um pouco de paz.
O dia estava incomum para um domingo frio: muita gente na rua, muito barulho. Comprou o New York Times pensando no seu apartamento quente e na possibilidade de passar o resto do dia na cama. Não escreveria naquele dia. Já haviam passado dias desde a última vez que escrevera uma única frase completa. Não sentia vontade, simplesmente não queria. As coisas não funcionavam assim para ele, e nas últimas semanas evitava o máximo possível às ligações do seu editor.
Voltou ao apartamento aliviado, sentou-se na cozinha que não limpava desde “não se lembrava quando”, e deu uma passada de olho pelas manchetes do dia. O ano de 1959 seguia sem grandes acontecimentos. O mundo continuava a se dividir entre heróis (americanos, capitalistas) e vilões (russos e comunistas). Tudo parecia seguir o rumo de uma nova guerra. Alheio, ao menos naquele domingo de ressaca, às notícias políticas, o olhar de Truman Capote passava rapidamente pelas páginas do jornal, enquanto bebericava o café forte e sentia o aroma fresco; a língua queimando. Um estranho que o visse de longe imaginaria que ele estava atento a tudo, menos às páginas que folheava sem vontade. Era uma figura estranha, sentada em uma cozinha suja e caótica, com um copo descartável de café e um olhar frio. Era difícil imaginar que daquela cena nasceria um dos maiores livros já publicado na história americana.
Enquanto as grandes manchetes não lhe chamavam a atenção, uma pequena nota isolada em uma página perdida, sem muitos atributos, o fez mudar de posição na cadeira e deixar o café de lado ao menos por um minuto. Eram dois parágrafos sucintos que descreviam a chacina de uma família no interior do Kansas, estado do centro dos Estados Unidos. Uma família inteira assassinada por poucos trocados, de forma brutal e aparentemente sem deixar marcas. Não muito diferente de outros casos que o New York Times já noticiara outras vezes.
Mas foi ali, na tragédia de uma família tipicamente americana, que Capote encontrou vestígios para escrever um dos livros mais emblemáticos do jornalismo e da literatura mundial. Polêmico e desempenhando o papel de jornalista 24 horas por dia, Capote passaria os próximos seis anos de sua vida envolvido naquela história de arrepiar. Uma triste realidade que saiu do anonimato de uma minúscula cidade qualquer para se transformar num relato único e pavoroso.


***


É impossível falar de “A Sangue Frio” sem citar o seu polêmico autor, Truman Capote. Ao ler a pequena notícia sobre a chacina de uma família, o jornalista percebeu que ali nascia a oportunidade de fazer o trabalho da sua vida: Inaugurar o romance de não-ficção. Entre as polêmicas que envolvem o livro e a vida de Capote, a criação de um novo gênero jornalístico (ou seria literário?) é uma das mais questionadas. Muitos afirmam que o romance de não ficção já existia, praticada na mesma revista em que trabalhava Capote, a The New Yorker. Décadas antes John Hersey havia publicado a grande-reportagem (que também se transformou em livro) Hiroshima (1946), que contava o relato de sobreviventes às bombas de Hiroshima e Nagasaki no Japão, durante a segunda guerra mundial.

Truman Capote


O jornalismo de não-ficção,  também conhecido como New Journalism ou Jornalismo literário é um estilo que, de forma a simplificar-se o significado, mistura preceitos jornalísticos (apuração, entrevistas, informações, etc) com literatura, relatando um fato de forma, muitas vezes, mais aprofundada, baseando-se em características psicológicas, descrevendo cenas, lugares, pessoas, etc. O texto é mais longo e é permitida uma visão pessoal do jornalista. Existem várias vertentes do estilo e muitos escritores se fizeram famoso escrevendo esse tipo de literatura, como por exemplo, Tom Wolfe, Gay Talese e Gabriel García Márquez.

A Sangue frio é o resultado de cinco anos de apuração, entrevistas e, por que não, impressões pessoais de Truman Capote sobre a tragédia da família Clutter, assassinada no dia 14 de novembro de 1959 na pequena cidade de Holcomb, Kansas. Truman chegou à cidade cena do crime apenas alguns dias depois da tragédia, e passou anos no local, entrevistando conhecidos, vizinhos, investigadores e os próprios assassinos da família. Em seu relato, ele deixa transparecer o psicológico de Perry Smith e Dick Hickock, os criminosos, revivendo a infância e os traumas dos mesmos. Sabe-se que Capote foi o único com acesso aos criminosos quando ambos já estavam condenados ao corredor da morte. Neste ponto há uma crítica com relação a postura profissional de Capote. Seus críticos afirmam que a relação do escritor com os assassinos passou do campo profissional e tornou-se pessoal, especialmente com Perry Smith; há “teorias” de que ambos mantiveram um caso no período em que Smith esperava a sua condenação.

Em ordem: Perry Smith e Dick Hickock


O fato é que, apesar das polêmicas e das críticas à postura ética de Capote, A Sangue Frio não é apenas um relato cru da cena de um crime, é um romance que se embrenha pela própria sociedade americana, se aprofunda na mente psicopata e, por que não, na justiça americana daquela época.
O livro começa antecipando o principal fato da história: o assassinato dos quatro membros da família Clutter. Aos poucos você vai conhecendo a rotina de uma das famílias mais queridas e respeitadas daquela comunidade; vai se acostumando com a simplicidade de Holcomb (que espera o correio jogado pelas portas de um trem, que nem sequer para na cidade). Você só conhece os detalhes dos assassinatos no mesmo tempo em que os investigadores vão descobrindo pistas e fatos sobre o fato. Os assassinos não são um segredo para o leitor, que nas descrições de Capote vai “entendendo” as motivações de Smith e Hickock. Truman vai fundo e busca explicações nos traumas dos criminosos. Aqui vale um parêntese. A narrativa do livro te leva a crer que Perry Smith, apesar de ter assumido ter atirado nos quatro membros da família, não é o “malvado” da história. Com uma história triste e pobre, Smith é encorajado todo o tempo por Dick a realizar o ato de crueldade. Muitos acreditavam na insanidade de Perry, e alguns críticos afirmam que conhecendo Smith como conheceu, Capote podia ter testemunhado em favor da “loucura” do assassino. Uma questão ética entra em pauta: até que ponto o jornalista pode interferir nos fatos?

Fugindo um pouco das polêmicas, A Sangue Frio segue uma narrativa precisa, onde cada detalhe é exposto e explicado, onde os personagens secundários te ajudam a compreender a realidade de Holcomb e como viviam os Clutter. Você é inserido na história e em alguns momentos é possível que surja uma pergunta. Como Capote poderia saber de tantos detalhes?

Família Clutter


Uma pergunta respondida em quase seis anos de trabalho, que só terminou quando os assassinos foram enforcados em 14 de abril de 1965. Do fatídico dia em que a rotina de Holcomb foi interrompida pelo assassinato da família Clutter ao dia em que os assassinos pagaram por seus crimes, Capote mantém uma descrição dos fatos incrível. É difícil não perceber características que seriam influência para posteriores relatos de jornalismo e literatura. Os dias em que os assassinos passaram à espera no corredor da morte foi uma possível inspiração para Stephen King escrever um de seus livros mais famosos, “The Green Mile” (À espera de um milagre no Brasil). Perry Smith recebia visita de um pequeno animal em sua primeira cela. Era sua única companhia e assim como Eduard Delacroix  treinava o seu ratinho de circo. Os personagens de King também mantém certa semelhança com a descrição de Capote dos companheiros de Smith e Dick no corredor da morte.

Ao terminar A Sangue Frio fica uma sensação gelada no corpo. Ler o livro é como reviver aqueles dias; é transformar-se em um observador, assim como foi Capote, do desenrolar de um dos crimes que abalaram a América. Famílias seguiram sendo assassinadas, criminosos seguiram manchando de sangue comunidades pacíficas por todo o mundo, mas nenhum livro foi capaz de chocar e relatar tão bem como foi A Sangue Frio, já um ícone do jornalismo e da literatura.


No Brasil A Sangue Frio é publicado pela editora Companhia das Letras. Para quem se interessa também há dois excelentes filmes sobre a história. A primeira baseada no livro, que conta a história dos assassinos e de acordo com o enredo do livro. O filme é de 1967 e possui o mesmo título do livro. O outro filme se chama Capote (2005) e é sobre a relação de Capote com a história. Dois ótimos filmes.