Qual é a razão de ler um livro?
Em que nos fixamos para escolher qual a próxima leitura? Enredo, autor,
personagens, capas, formato? É uma pergunta um tanto quanto pessoal. Eu, por
exemplo, geralmente compro livros de autores que conheço ou que tenho indicação
de algum amigo. Confesso que já “comprei o livro pela capa” e até o cheiro
(sim, eu sou um cheirador de livros, rs) já me influenciou. Enveredar-se por
uma nova história, no meu caso, exige uma boa ambientação. Talvez seja este o
motivo do meu receio com livros digitais. Sei que o avanço tecnológico é
inevitável, mas ainda prefiro o físico, o livro em si. Mas, por que esta
discussão? O livro em questão, razão desta resenha, é um livro escrito e divulgado
por um meio eletrônico, o WattPad.
Para quem não conhece, o Wattpad
é uma comunidade on-line de escritores e leitores, onde o usuário pode publicar
suas próprias histórias, textos, poemas, etc, além de ter uma infinidade de
opções de leituras, com temas e formatos diferenciados de autores conhecidos ou
não. O diferencial é que ele também pode ser acessado por um aplicativo via
celular disponível gratuitamente, permitindo assim uma maior interação com o
escritor ou outros leitores. É uma ferramenta incrível neste novo cenário
tecnológico, mesmo para aqueles que como eu, ainda preferem a leitura comum.
Conheci a comunidade por uma
amiga (e também co-autora desta resenha). Ingrid (prefiro chamá-la de Lola)
vinha me influenciando a ler algo por ali a algum tempo, mas eu tinha meus
receios (e por quê não, preconceitos?). Depois de alguns argumentos ela
conseguiu me convencer e eu resolvi dar
uma chance para “As mixtapes de Ben”, meu primeiro contato com o WattPad. A velocidade em que li a história foi
incrível. Li pelo aplicativo, e apesar de não sentir a textura e o cheiro de
livro, me senti muito próximo da história. Antes de falar um pouco do livro, segue
uma pequena sinopse disponível na abertura da história:
“Benício
grava em fitas-cassete retratos sonoros de sua vida. Teria dificuldade,
entretanto, para harmonizar canções que simbolizassem todas as atribulações por
que passaria no fim dos anos 90, entre
passeios à locadora, tamagotchis e boybands.
A adolescência impulsiona Ben a um mundo novo, no qual precisa lidar com
a sexualidade não aceita pelo pai e a dificuldade de um amor à distância, com a
desconfortável vida escolar, e os tropeços inevitáveis dos relacionamentos
humanos. Auxiliado por Bia, a melhor (e única) amiga, Ben traça um plano para,
em 30 dias, encontrar-se com sua paixão à distância, o que desencadeia uma
busca pela coragem de se tornar quem realmente é.
Com a nostalgia, as canções e as cores dos anos 90 de pano de fundo, As
Mixtapes De Ben é uma narrativa simples e empolgante sobre crescer, amadurecer
e se aceitar.”
Em primeiro lugar é preciso
ambientar bem a história. Ela se passar em uma cidade do interior, em uma época
em que whatsapp, facebook, aplicativos de celular e a infinidade de facilidades
que temos hoje não existiam. A história de Ben inspira nostalgia desde o
primeiro momento, quando nos deparamos com um garoto esperando uma chamada em
frente a um orelhão. Aos poucos, especialmente para quem viveu um pouco daquela
época, você vai se ambientando aos anos 90 em um Brasil respirando redemocratização,
dançando É o Tchan! até o chão, mas que ainda preservava tons conservadores das
décadas anteriores. Se hoje, assumir-se gay não é nada fácil, imagina a 20 anos
atrás. E para um adolescente como Ben, com uma alma tranquila e romântica, mas
um tanto ingênua as coisas não são nada fáceis. Ele precisa conviver com a
pressão familiar de ser e tornar-se um homem, fazendo “coisas de homens” e com
a figura de um pai visivelmente preconceituoso e machista. Naquela época,
arrisco eu a dizer, a palavra homofobia não era tão vinculada e discutida como
atualmente, mas se temos um adjetivo para o que o pai de Ben, é homofóbico. Já
a mãe, apesar da amorosidade, é submissa ao autoritário marido, até o momento
em que o amor pelo filho a transforma em corajosa. O ciclo familiar termina com
a irmã que é uma mescla entre a personalidade do pai, conservador, e da mãe,
submissa. É neste ambiente que parte dos conflitos de Ben se desenvolve,
conflitos que são, ainda hoje, muito comuns nos lares brasileiros. Deve haver
várias histórias parecidas ou até mais dramáticas pelo país afora. Apesar de
esta ser uma resenha, não pretendo antecipar os fatos da história. A ideia é
instigar (assim como a Lola me instigou) a ler, portanto, aqui temos um conflito:
pai homofóbico, filho gay, família instável e muitos preconceitos a serem
batidos. Lembrando que estamos nos anos 90, em uma cidade do interior, em uma
família conservadora.
Outro conflito vivido por Ben é
na escola, conflito que é muito comum para os adolescente gays: viver com as
constantes chacotas, piadas e saber que você não se encaixa naquele padrão que
lhe é imposto desde o jardim de infância. Essa situação torna imperativa a
necessidade de discutir a homofobia nas escolas, assim como é preciso discutir
todos os preconceitos. Nossa sociedade é preconceituosa e existe cura para isso:
conhecimento. Durante a leitura refleti muito sobre as cenas que o livro
retrata. Ben é vítima do preconceito pelos colegas e a todo tempo é humilhado
com especial raiva por Nelson, um ex-colega do garoto que, a meu ver, esconde
uma homossexualidade enrustida. Eu posso dizer com propriedade que é no
ambiente escolar que o medo de ser “diferente” se fortalece, pois nosso
sistema, infelizmente, recria preconceitos e estimula a “pseudo-normalidade”.
Mas a história de Ben é também, e
sobretudo, uma história de amor, que dentre vários, é o grande mérito da
história. E em um ambiente desesperado de alguém que procura outro como a si
que nasce o carro chefe das “Mixtapes de Ben”. Todo esse tom de notalgia e essa
coragem que nasce no protagonista são frutos de um amor, um amor juvenil
daqueles que parecem único. Da troca de cartas, das ligações no orelhão e do
anseio de um primeiro encontro, o namoro vai se enraizando e se fortalecendo a
cada capitulo e de repente você está tão ansioso quanto Ben em conhecer Otelo,
o “mouro” carioca e um dos trunfos de Raphael Cardoso (autor) como personagem. Otelo
é um gay sábio (talvez por conta de sua própria vivência), e um pouco mais
velho, que conhece a problemática de ter uma condição sexual não aceita e é ele
que ajuda Ben a passar pelos desafios em se assumir e enfrentar o mundo. Otelo
tem o que falta no protagonista, uma coragem racional e evoca um sentimento de
segurança. Ao mesmo tempo, é nas mixtapes de Otelo que o autor nos brinda com
algumas das páginas mais líricas e marcantes da obra. A relação a distância dos dois se fortalece
com as mixtapes que ambos gravam em cassetes para o outro e que ajudam o
relacionamento a fluir. Você acaba descobrindo uma nova forma de ler um livro
(que só um aplicativo como o WattPad pode permitir). A história te dá novos
formatos de leitura e enquanto você devora cada capítulo, o link com a mixtape
daquela parte da história é a trilha sonora que dá sabor aos fatos. Cada nova
mixtape que o livro nos apresenta é a descoberta de personagens (ou será o
autor?) com um gosto musical excelente e que dão ritmo ao enredo, embalado ao
som de Mazzy Star, Portishead, Simon and Garfunkel, Smashing Pumpkins, Jeff Buckley,
Alanis Morissette, entre outros. É preciso mergulhar na história, deixando-se levar pela música das mixtapes e
pelo tom de juventude dos personagens.
Um dos pontos fortes e talvez o
melhor capítulo é o primeiro encontro de Ben e Otelo no Rio de Janeiro. O autor
soube descrever bem as paisagens cariocas, sempre com os tons soturno e
nostálgico que dão ritmo ao livro, e fez do primeiro encontro deles
inesquecível.
Apesar das mixtapes girarem em
torno do romance a distância de Ben e Otelo, existe um terceiro personagem que
dá outro tom à história: Heitor. Atrevido, protetor e seguro de si, Heitor é um
companheiro de sala de Ben que o acaba ajudando em uma das várias situações de
constrangimento que o preconceito gera na vida do garoto. Uma fagulha de amor
nasce das situações que enfrentam juntos e entre a presença e ausência, Ben
terá que descobrir o melhor caminho para o seu jovem coração.
Acredito que os três pilares das
“Mixtapes de Ben” estão apresentados, lembrando que a história se desenvolve com
outros personagens também, como o professor Hermes (imprescindível na trama em
vários momentos) e a melhor amiga (e fiel escudeira) de Ben, Bia.
Foi uma nova
experiência de leitura. Diferente, prazeroso e eficaz, o texto de Raphael
Cardoso é ágil, dosado e poético. Às vezes é um pouco exagerado nas descrições
e dramático nos diálogos, talvez pelo tipo de público e pela forma como a
história foi escrita (capítulos publicados periodicamente). Nos poucos momentos
que perdi o ritmo foi pelo cansaço de
ter quase sempre a visão de Benício do enredo (claro, a história é dele, mas às
vezes poderia haver um respiro maior) ou porque me sentia lendo um roteiro de
Malhação com todos os dramas sendo do protagonista. Entretanto, no final a
história é ótima e deixa uma sensação nostálgica incrível. Revivi a época das
locadoras de vídeo, dos cassetes, de jogar pokemon no game boy. Me lembrei um
pouco daquela sensação de interior, das
tardes tempestuosas com bolinho de chuva, dos banhos na cachoeira ou das tardes
quentes com os amigos. Também revivi minha época de vencer meus próprios
preconceitos, dos dias em que uma piada destruía meu dia e quando tive o valor
de assumir-me como sou. Por tantas lembranças e por uma história assim, valeu a
pena deixar um pouco o livro físico de lado e se enveredar por essa ferramente
incrível. Eu mesmo a alguns anos atrás era um poeta relativamente conhecido no
Nyah (rede social de fanfictions).
Para finalizar
bem esta resenha não poderia faltar minha própria Mixtape, feita especialmente
para os que chegaram ao final do texto, rs. Portanto, feche os olhos. Imagine
que este texto no computador (ou
celular) é uma carta de um velho amigo indicando um livro. Junto a carta chega
também um cacete com 10 músicas desconhecidas. Você se deita e saboreia cada
canção (não se esqueça de dar volta no cacete para o lado B). Aí está o cenário
para ler uma boa história. Clique no link abaixo para escutar a seleção: